top of page

Perfis / Conto / Crônicas

RETRATOS DA PERIFERIA

nndnd_edited_edited.jpg

ZONA TRANSLÚCIDA

Millena Gama - Junho de 2020

Cinco horas da manhã. O sol ainda adormece lá fora. A jovem mulher acorda sobressaltada pelo ritmo frenético do som que escapa pelo despertador. Os olhos se abrem e só enxergam a palpável escuridão que habita o pequeno cômodo. Ela precisa levantar para não perder o ônibus que passa às cinco e meia na avenida Sapopemba. O esforço da mente precisa vencer o cansaço do corpo. Já é sexta-feira. Repete ela mentalmente como um mantra para manter a calma e ter a motivação suficiente para mais um dia de trabalho. Já é sexta-feira.
Um pé de cada vez é colocado para fora da cama. O dia começou e inicia-se novamente a invasão de pensamentos e responsabilidades na mente dela. Uma ducha quente deve ajudar a despertar. Caso não resolva, o café bem passado é tiro e queda quando uma injeção de ânimo se faz necessária. As roupas passadas na noite anterior encontram-se depositadas na cadeira ao lado da cama. A previsão para o dia é de chuva, mas ela espera ansiosamente pelo sol.
Cinco e vinte. Já está na hora de sair e os cabelos ainda precisam ser desembaraçados. Ela penteia com rapidez e corre para a cozinha. Na geladeira encontra a marmita com o jantar da noite passada. Habilmente, coloca a marmita na mochila e se despede da casa.
Cinco e vinte cinco. É preciso correr para não perder o ônibus, já que o próximo só passará em quinze minutos. Ela corre com a mochila nas costas que dança ao ritmo do seu corpo. Só restam dois minutos para chegar no ponto a tempo de pegar o ônibus. Apenas dois minutos. A corrida ganha um impulso maior, mas O sinal demora a ficar vermelho para os motoristas. Ela ainda precisa atravessar a avenida. Quase como se estivesse a seu favor, o semáforo fica vermelho para os carros, motos e ônibus que atravessam a avenida. A luz verde para o pedestre desperta os pés agitados que retomam a maratona. No momento em que chega no ponto, o ônibus é avistado há menos de quinhentos metros. Vai dar tempo. Repete para si mesma em voz baixa.
O transporte público está cheio. Ela observa rapidamente os rostos dos conhecidos que sempre pegam o ônibus 574W-10 rumo à estação Belém. Por um segundo, parece que os passageiros se mantiveram ali, nos mesmos lugares e com as mesmas expressões carrancudas de quem já acordou com o “pé esquerdo”. Por conta do trânsito no percurso da avenida Sapopemba até o Jardim Anália Franco, a viagem dura uma hora e cinco minutos. Tudo bem, ela repete novamente em voz baixa, vai dar tempo.
Seis e trinta e cinco. Hora de descer correndo do ônibus para alcançar o metrô. A plataforma da linha 3 vermelha já deve estar abarrotada de pessoas. Ela precisa correr se quiser chegar na estação Anhangabaú no horário. Como previsto, a multidão se aglomera na plataforma, dificultando a saída e entrada de passageiros dos metrôs. Finalmente, a mulher consegue entrar no vagão, onde fica espremida como uma sardinha em lata ao longo do trajeto de quinze minutos.
Seis e cinquenta. O esforço para sair do vagão já se tornou um hábito. Ela corre para chegar a tempo no trabalho. Desvia de pedestres nas ruas e dos pombos que ficam reunidos em grupos nas praças do centro. Quando avista o prédio em que trabalha, acelera o passo, mesmo sentindo o cansaço latente nas panturrilhas. “Bom dia” é o cumprimento dito para as recepcionistas, os colegas no elevador e no andar em que ela trabalha.
Sete horas da manhã. Ela bate o ponto para registrar a entrada no serviço. As horas seguintes passam como uma marcha lenta, mas passam.
Quatro horas da tarde. Hora de ir embora. A pressa protagonista daquela manhã, cede lugar para a calma que, aos poucos, preenche o corpo da mulher. Agora, ela observa o sol que reflete a luz nos prédios espelhados no Vale do Anhangabaú. O cenário, antes visto como caótico, abre espaço para a contemplação.
A mulher retorna para casa, desce do ônibus 574W-10 na avenida Sapopemba e caminha lentamente para casa. Não existe mais pressa. Não existe mais zona leste ou zona central. Agora, tudo resume-se a uma zona translúcida que, finalmente, permite a passagem de luz.

WhatsApp%20Image%202020-05-25%20at%2014.

MILLENA GAMA

Estudante de Jornalismo na Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação.

@lukesaw_

bottom of page